Advocacia e Inteligência Artificial: entre a inovação e a responsabilidade

A presença da inteligência artificial (IA) na advocacia já não pertence ao terreno das tendências — ela compõe, de forma concreta, o cotidiano da prática profissional. Assistentes jurídicos automatizados, sistemas de jurimetria, plataformas de linguagem natural capazes de sugerir argumentos ou redigir minutas passaram a integrar a rotina de escritórios e departamentos jurídicos em todo o país. Diante dessa nova paisagem tecnológica, o desafio não está apenas em acompanhar as transformações, mas sobretudo em compreendê-las criticamente e conduzi-las com responsabilidade.

O uso consciente da IA exige muito mais do que familiaridade com ferramentas digitais. Ele pressupõe o compromisso com a preservação da integridade técnica, ética e estratégica da atuação da advocacia. Não há dúvida de que a tecnologia pode ampliar a produtividade, otimizar fluxos de trabalho e gerar ganhos expressivos em termos de gestão. No entanto, tais benefícios somente se materializam de forma legítima quando acompanhados de critérios técnicos claros e da vigilância de uma atuação profissional qualificada.

A inteligência artificial, nesse contexto, revela-se um avanço significativo. A capacidade de automatizar tarefas repetitivas e analisar grandes volumes de informação em tempo reduzido libera a advocacia para se dedicar ao que realmente importa: escutar o cliente com atenção, pensar estrategicamente e construir soluções jurídicas consistentes. A tecnologia, quando bem empregada, potencializa o valor do trabalho humano.

É justamente nesse ponto que reside a chave da questão: a IA deve potencializar — e jamais substituir — a inteligência da advocacia. A confiança cega em ferramentas que operam a partir de algoritmos, muitas vezes opacos, generalistas e descontextualizados, pode conduzir a equívocos graves: da inserção de argumentos sem sustentação jurídica ao uso inadvertido de dados sensíveis sem a devida cautela.

Os relatos se multiplicam: petições contendo trechos fictícios, decisões inexistentes, argumentos mal construídos — tudo fruto de automatismos não supervisionados. A delegação à tecnologia daquilo que é indelegável, como o raciocínio jurídico e o juízo crítico, coloca em risco não apenas a qualidade técnica do trabalho, mas também a própria legitimidade da advocacia.

Mais do que usuária da tecnologia, a advocacia deve ser sua curadora.

Isso implica domínio técnico das ferramentas utilizadas, leitura atenta do contexto em que são aplicadas, revisão criteriosa dos conteúdos produzidos e, sobretudo, zelo absoluto com os dados e informações manuseados. A atuação ética, nesses termos, não se resume ao conteúdo do trabalho entregue: ela também se manifesta na forma como esse trabalho é elaborado.

Não se trata de demonizar a tecnologia, mas de reconhecer que sua aplicação no universo jurídico exige parâmetros claros, compatíveis com os deveres profissionais estabelecidos pelo Código de Ética e Disciplina da OAB. A IA pode auxiliar — mas jamais isentar a advocacia da responsabilidade pelo conteúdo assinado. A diretriz é clara: a máquina pode até redigir, mas quem responde — ética, técnica e juridicamente — é quem assina.

Essa preocupação, aliás, já reverbera nas instituições do sistema de justiça. Diversos tribunais têm emitido alertas e decisões destacando os riscos do uso indiscriminado de sistemas automatizados na confecção de petições. Em julgados recentes, menciona-se expressamente a necessidade de supervisão humana e a responsabilidade profissional pelos conteúdos elaborados com auxílio de IA. Em certos casos, trechos automatizados foram desconsiderados; em outros, a atuação foi questionada eticamente.

A partir do momento em que a advocacia se capacita e compreende os fundamentos técnicos, operacionais e éticos da inteligência artificial, surge também um novo papel institucional: o de acompanhar criticamente a implantação da IA pelo próprio Poder Judiciário. Não basta que a profissão conheça os limites das ferramentas que utiliza em sua atuação direta; é essencial que também vigie e compreenda o uso dessas mesmas tecnologias pelos magistrados e servidores públicos.

A adoção de sistemas de IA no âmbito judicial — seja na triagem de processos, na elaboração de minutas de decisões ou na aplicação de filtros automatizados — deve ser transparente, auditável e submetida a critérios objetivos de supervisão humana. E é nesse ponto que a advocacia exerce função essencial: atuar como fiscal e interlocutora qualificada nesse processo de transformação tecnológica do Judiciário.

Ao acompanhar a implementação da IA pelos tribunais, a advocacia colabora para garantir que os princípios do devido processo legal, da ampla defesa, da publicidade e da imparcialidade sejam preservados mesmo diante da automação. Além disso, contribui para o aprimoramento dos sistemas, identifica riscos e reforça a legitimidade do processo jurisdicional em uma era de decisões cada vez mais influenciadas por dados e algoritmos.

Não há dúvida de que a inteligência artificial veio para ficar. Mas o modo como será incorporada à prática jurídica definirá se ela atuará como aliada ou como ameaça. A inovação, para ser efetiva, precisa caminhar ao lado da reflexão crítica, da responsabilidade técnica e do compromisso ético. A advocacia que se prepara, se capacita e domina o uso da IA — com discernimento, transparência e fundamento jurídico — estará melhor posicionada para prestar um serviço moderno, eficiente e, sobretudo, alinhado aos valores que sustentam o Estado de Direito.