O que é Constitucionalismo Digital — e por que esse tema importa para a advocacia brasileira?

Este artigo não pretende esgotar o tema do Constitucionalismo Digital — muito pelo contrário. Nosso objetivo é aproximar esse debate da advocacia, facilitando a compreensão sobre um assunto ainda recente, mas cada vez mais necessário. Em tempos em que a vida se digitaliza e os direitos são exercidos (ou violados) também no ambiente virtual, é fundamental que nós, advogadas e advogados, estejamos atentos a essas transformações.

O que é Constitucionalismo Digital?

O Constitucionalismo Digital é um campo emergente do direito que propõe a aplicação dos princípios constitucionais — como a proteção de direitos fundamentais, a separação dos poderes e a supremacia da Constituição — ao ambiente digital. Trata-se de um esforço teórico e prático para enfrentar os impactos da digitalização sobre a democracia, os direitos e a estrutura do Estado de Direito.

Esse novo constitucionalismo se ocupa de temas como:

  • Privacidade e proteção de dados pessoais;
  • Liberdade de expressão e seus limites nas redes sociais;
  • Moderação de conteúdo e responsabilidade das plataformas;
  • Devido processo legal aplicado a algoritmos e decisões automatizadas;
  • Transparência, ética e regulação de inteligência artificial;
  • Influência política de atores privados e grandes corporações digitais.

Por que esse assunto importa para a advocacia?

Porque o ambiente digital não é um “espaço neutro”. Ele é altamente regulado — por termos de uso, algoritmos e decisões empresariais — que impactam diretamente o exercício de direitos constitucionais. Nesse cenário, o papel da advocacia é fundamental: garantir que os princípios do Estado Democrático de Direito não sejam esvaziados pela lógica das plataformas ou pela ausência de regulação efetiva.

A advocacia é, por natureza, defensora da legalidade, das garantias constitucionais e do acesso à justiça. Com a digitalização da sociedade e do próprio sistema de justiça, é urgente que os advogados compreendam os impactos das tecnologias sobre os direitos fundamentais.

No Brasil, onde mais de 90% da população está conectada à internet, enfrentamos desafios sérios: desinformação, vazamento de dados, uso indevido de algoritmos e até mesmo interferências em processos democráticos. O caso Cambridge Analytica, por exemplo, mostrou como dados pessoais podem ser usados para manipular decisões políticas, com consequências reais para a democracia.

Na prática, o Constitucionalismo Digital já se manifesta nos mais diversos contextos jurídicos. Veja alguns exemplos:


1. Contratos, compliance e relações empresariais

Advogados empresariais estão sendo chamados a revisar contratos com cláusulas relacionadas à coleta e tratamento de dados, uso de inteligência artificial e conformidade com a LGPD. A atuação inclui:

  • Auditorias digitais para identificar riscos constitucionais nos sistemas de coleta de dados;
  • Elaboração de cláusulas contratuais que garantam a transparência e a finalidade do uso de dados sensíveis;
  • Assessoria na elaboração de termos de uso e políticas de privacidade com linguagem clara e alinhamento à Constituição.

2. Responsabilidade civil digital e consumidor

Plataformas digitais decidem, com base em algoritmos, quem pode anunciar, vender, comentar, publicar ou até existir digitalmente. O advogado, nesse contexto, atua para:

  • Restabelecer perfis suspensos ou bloqueados arbitrariamente;
  • Discutir o devido processo legal em decisões automatizadas, como remoção de conteúdos ou cancelamentos de contas;
  • Questionar abusos em políticas de moderação de conteúdo que violam a liberdade de expressão.

3. Direito eleitoral e desinformação

A atuação na seara eleitoral também mudou. O caso Cambridge Analytica mostrou como o uso indevido de dados e a desinformação podem comprometer a lisura de eleições. No Brasil, temos visto:

  • Ações de advogados contra impulsionamento ilegal de campanhas;
  • Atuação contra a disseminação de fake news por aplicativos de mensagens;
  • Necessidade de compreender os efeitos da opacidade algorítmica sobre a formação da opinião pública.

4. Direito penal digital e responsabilização

Com a explosão dos crimes digitais, o advogado criminalista precisa dominar:

  • A responsabilização por discurso de ódio e cyberbullying, muitas vezes veiculados em perfis falsos;
  • A relação entre inteligência artificial e persecução penal, como no caso de sistemas de reconhecimento facial que violam garantias processuais;
  • A violação à privacidade com divulgação de dados íntimos ou hackeamento de perfis.

5. Direito do trabalho e decisões automatizadas

Advogados trabalhistas estão lidando com novas questões, como:

  • Demissões automáticas por algoritmos de produtividade, sem chance de defesa;
  • Monitoramento digital invasivo, que pode violar a dignidade do trabalhador;
  • Revisão de sistemas de metas e premiações baseados em IA, com possível viés discriminatório.

6. Acesso à justiça e exclusão digital

O próprio sistema de justiça digitalizado pode ser excludente. A advocacia deve estar atenta a situações como:

  • Clientes que não conseguem acessar processos eletrônicos por falta de conectividade;
  • Desigualdade digital que impede o exercício do contraditório e da ampla defesa;
  • Petições judiciais automatizadas que desafiam o papel tradicional da advocacia e exigem novas formas de atuação estratégica.

Desafios e Oportunidades

Apesar da importância crescente, o Constitucionalismo Digital ainda enfrenta obstáculos:

  • Falta de consenso sobre seu conceito e instrumentos normativos;
  • Velocidade das inovações tecnológicas, que supera a produção de leis e decisões judiciais;
  • Poder concentrado em grandes corporações globais, que regulam a internet com pouca transparência;
  • Desigualdade digital no Brasil, que amplia a exclusão e fragiliza a proteção de direitos.

Um novo papel para o advogado

O Constitucionalismo Digital nos convida a repensar o papel do advogado na sociedade. Além de operadores do direito, somos agentes de proteção constitucional também no espaço virtual. Precisamos dominar os aspectos técnicos, éticos e normativos desse novo cenário, propondo soluções que defendam a dignidade humana, a liberdade, a igualdade e o devido processo, inclusive nas redes.