Protocolo não é sentença: entre garantismo, realismo judicial e o papel dos protocolos do CNJ

Nos últimos anos, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem desenvolvido e publicado protocolos de julgamento com o objetivo de orientar magistrados e magistradas na aplicação mais justa, coerente e humanizada do Direito. Esses documentos são frutos de grupos de trabalho interdisciplinares, compostos por membros da magistratura, da academia, da sociedade civil e de instituições públicas, e seguem uma metodologia técnico-científica aliada à escuta ativa de operadores e operadoras do sistema de justiça.

Mas, afinal, o que são os protocolos do CNJ?

Trata-se de instrumentos interpretativos que buscam alinhar a atuação judicial aos compromissos constitucionais e internacionais assumidos pelo Brasil, especialmente no que se refere aos direitos humanos. Diferentemente de normas legais ou súmulas vinculantes, os protocolos não criam direitos nem obrigações novas. Eles sistematizam orientações já consagradas na jurisprudência nacional e internacional, oferecendo ferramentas para que o julgador compreenda melhor o contexto das partes envolvidas no processo — sobretudo em casos que envolvem desigualdades estruturais.

Exemplo emblemático é o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, instituído em 2021 e tornado obrigatório pela Resolução CNJ nº 492/2023. Com ele, pretende-se mitigar a reprodução de estereótipos e discriminações no Judiciário, sem com isso comprometer os pilares do devido processo legal, da ampla defesa ou do contraditório. O mesmo se aplica ao Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial.

Contudo, nem todos acolhem pacificamente esse movimento. Há quem veja nesses instrumentos uma ameaça ao garantismo penal, entendendo que sua aplicação pode levar à perda da imparcialidade, ao enviesamento da instrução e ao enfraquecimento do contraditório. Tal crítica é, em parte, alimentada pelo receio de que a balança da Justiça se incline em favor de narrativas pré-concebidas, em detrimento da análise rigorosa das provas.

Esse ponto de tensão revela uma disputa mais profunda entre duas grandes correntes do pensamento jurídico contemporâneo: o garantismo, que enfatiza a proteção contra o arbítrio estatal, e o realismo judicial, que reconhece a influência do contexto social e dos valores do julgador na interpretação do Direito. De um lado, o garantismo exige regras estáveis, limites ao poder punitivo e neutralidade institucional. De outro, o realismo aponta que nenhum julgamento é absolutamente neutro, e que ignorar desigualdades históricas é, em si, uma forma de injustiça.

Como reconciliar essas visões?

A resposta pode estar naquilo que o Direito tem de mais difícil e necessário: equilíbrio. É preciso admitir que protocolos são instrumentos, não sentenças. Não substituem o discernimento do juiz, nem autorizam a inversão de ônus probatórios sem amparo legal. Mas também é preciso reconhecer que a formação jurídica tradicional — muitas vezes desprovida de olhar interseccional — pode invisibilizar violações de direitos que não se enquadram nos modelos normativos clássicos.

Por isso, o caminho passa por três pilares:

  1. Consciência do papel transformador (ou reprodutor de desigualdades) que o Judiciário pode exercer;

  2. Capacitação contínua dos operadores do Direito para compreender contextos sociais, sem abrir mão da técnica jurídica;

  3. Bom senso institucional, para que a aplicação dos protocolos se dê de forma criteriosa, fundamentada e proporcional.

Ao final, não se trata de escolher entre o garantismo ou o realismo, mas de lembrar que nenhuma teoria jurídica se sustenta se não estiver a serviço da Justiça. E a Justiça, para ser justa, deve ser também consciente das realidades que julga.