O sistema de justiça brasileiro enfrenta um paradoxo evidente: enquanto acumula milhões de processos judiciais e sofre com morosidade crônica, ainda subutiliza métodos autocompositivos como a mediação. Simultaneamente, vive-se a expansão do uso de tecnologias jurídicas baseadas em inteligência artificial (IA), que trazem novas perspectivas de eficiência, mas também exigem atenção ética, jurídica e institucional. Neste cenário, a interseção entre mediação e IA representa não apenas uma oportunidade, mas uma necessidade estratégica.
Conforme estabelecido pela Resolução CNJ nº 125/2010, a mediação não é uma alternativa acessória ao processo judicial, mas sim uma política judiciária de tratamento adequado dos conflitos. Ao privilegiar o protagonismo das partes, a mediação promove soluções mais sustentáveis, menos custosas e mais rápidas, com especial impacto nas relações continuadas. É também instrumento de pacificação social e de desjudicialização eficaz, notadamente em conflitos familiares, empresariais, consumeristas e de vizinhança.
A mediação judicial e extrajudicial ganhou força normativa e institucional no âmbito do Conselho Nacional de Justiça, com a estruturação de Centros Judiciários de Solução de Conflitos (CEJUSCs), capacitação de mediadores e formação de uma cultura de consensualidade.
Portanto, a mediação deve ser tratada como política pública. Mas para que isso ocorra em larga escala, é preciso pensar em ferramentas que potencializem sua aplicação. A inteligência artificial, neste contexto, surge como uma aliada.
Advocacia e mediadores preparados: IA como suporte, não substituição
Para os mediadores, a incorporação de tecnologias pode significar ganho de tempo, qualidade e segurança na condução dos procedimentos. Ferramentas de IA podem contribuir com análise documental, identificação de interesses centrais, organização de propostas e até mesmo simulações de cenários prováveis.
Do ponto de vista da advocacia, a mediação é uma estratégia eficaz e moderna para resolver conflitos com menos desgaste e mais previsibilidade. Advogados que atuam com foco na composição conseguem proteger melhor os interesses dos clientes, evitando desgastes relacionais e financeiros desnecessários. A IA pode ser uma aliada também nesse contexto, com sistemas que auxiliam na análise jurídica preditiva, organizam minutas de acordos, avaliam riscos processuais e facilitam a tomada de decisão orientada por dados.
O papel do Poder Judiciário e os limites do modelo atual
Apesar de avanços normativos, como a Resolução CNJ nº 125/2010 e a Lei nº 13.140/2015, o Judiciário brasileiro ainda enfrenta resistências institucionais à mediação como via preferencial. A imensa demanda de processos e a estrutura tradicional de julgamento comprometem a expansão sistemática dos métodos autocompositivos.
Nesse contexto, a IA pode ser uma ferramenta decisiva. Pela triagem inteligente de casos, identificação de padrões de conflitos e previsão de soluções, é possível encaminhar mais processos para mediação com critério e eficiência. Sistemas como o Sinapses (CNJ), já em operação, podem ser expandidos para auxiliar na gestão dos CEJUSCs e na seleção de casos com alto potencial de resolução consensual. Isso permitiria um redirecionamento estratégico de milhares de processos para o ambiente da mediação.
Interfaces da mediação com a inteligência artificial
A IA pode ser usada para:
- Triagem automatizada de casos com base em classificação de tipo de conflito;
- Sugestão de termos de acordos com base em soluções anteriores;
- Análise de sentimentos para auxiliar a compreensão do perfil emocional das partes;
- Análise de riscos e alternativas jurídicas comparadas para subsidiar decisões negociadas.
Plataformas de resolução online de conflitos (ODR) já operam com IA generativa para elaborar mensagens, reformular propostas e sugerir caminhos para o consenso. Estudos internacionais, como “Robots in the Middle” e o projeto LLMediator, demonstraram que modelos de linguagem conseguem, em alguns casos, sugerir respostas ou intervenções mais adequadas que humanos, especialmente em disputas padronizadas.
Ainda assim, o papel humano permanece insubstituível. Empatia, escuta ativa, compreensão cultural e relações de confiança não podem ser reproduzidas por algoritmos. A IA deve ser ferramenta de apoio, não de substituição.
Diretrizes normativas: Resoluções CNJ 125/2010 e 332/2020, e a EBIA
A Resolução CNJ nº 332/2020 institui diretrizes éticas e técnicas para o uso da IA no Judiciário, com foco na transparência, prevenção a vieses, explicação algorítmica, supervisão humana e respeito aos direitos fundamentais.
Complementarmente, a Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial (EBIA), do Ministério da Ciência e Tecnologia, traz diretrizes gerais para o uso da IA no setor público, com ênfase em segurança, governança e equidade. Ambas as normativas sustentam o uso institucionalizado e responsável da tecnologia também nos processos de mediação.
Propostas para integração prática
Para tornar realidade a integração entre mediação e inteligência artificial, é necessário avançar em frentes complementares e interdependentes. A primeira delas diz respeito à implantação de sistemas de triagem automatizada nos tribunais, capazes de identificar, com base em algoritmos treinados, processos que possuam características favoráveis à resolução por mediação. Essa triagem não deve ser meramente estatística, mas considerar fatores humanos, como a natureza da relação entre as partes, histórico de litígios e viabilidade de restabelecimento do diálogo.
Em paralelo, é urgente integrar ferramentas de IA às plataformas digitais de mediação, especialmente aquelas já utilizadas nos CEJUSCs ou por câmaras privadas. Essas plataformas devem permitir que os mediadores certificados supervisionem as sugestões geradas por IA evitando que decisões automatizadas comprometam a autonomia das partes ou conduzam a acordos inconsistentes.
Capacitar os profissionais do sistema de justiça — magistrados, servidores, mediadores e advogados — é etapa essencial. Não se trata apenas de treinar para o uso de softwares, mas de promover uma compreensão ética e crítica das limitações e potencialidades da IA na resolução de disputas.
Para garantir a legitimidade desse modelo híbrido, é fundamental estabelecer protocolos de transparência que assegurem o conhecimento, pelas partes, do uso de IA nos processos de mediação. Informações como quais algoritmos estão sendo aplicados, com que finalidade e sob qual supervisão devem constar de maneira acessível e auditável.
Por fim, é preciso aprimorar a gestão da política pública de mediação, incorporando os dados produzidos nesses processos de forma estatística e anonimizadas. Ao incluir indicadores de resolutividade, tempo médio, satisfação das partes e áreas temáticas mais incidentes, os tribunais poderão tomar decisões mais informadas sobre onde investir, como melhorar seus fluxos e como expandir as boas práticas já identificadas.
Considerações finais
Mediação e inteligência artificial não se excluem. Pelo contrário: quando combinadas com responsabilidade, sensibilidade e preparo técnico, podem oferecer respostas mais humanas, céleres e sustentáveis ao sistema de justiça.
A advocacia tem papel essencial na consolidação dessa cultura. O Judiciário, por sua vez, precisa investir na infraestrutura digital e na governança dos dados. E os mediadores devem se capacitar continuamente para lidar com ferramentas que ampliam — e não anulam — sua escuta e presença.
O futuro da Justiça deve ser híbrido. E será mais justo se conseguirmos manter o ser humano no centro, com a tecnologia como apoio e nunca como fim.